terça-feira, 26 de abril de 2011

                 A Charlie Chaplin e a Lewis Carroll


Eu às vezes fico nessa de curtir uma saudade das coisas que não vi, das pessoas com as quais não convivi. Uma saudade estranha, dessas de fazer suspirar. Às vezes sinto vontade de ficar dias inteiros fazendo só o que dá na telha a la Charlie Chapin, encostada na lua.

O que me angustia é que não consigo ficar muda. Se eu falasse menos, talvez dissesse mais. Quem sabe meus gestos falassem por mim. Já ouvi de Drummond que o discurso, acalanto burguês não envaidece o irreverente Chaplin, e o silêncio fala muito mais que eloqüentes palavras.

Mas cada dia mais fica difícil não me pronunciar diante do que percebo acontecer em minha volta. A cada dia mais fica impossível fazer de conta que não escuto a voz das entrelinhas. Elas gritam e se comunicam. Elas não estão mortas e querem respostas.
Talvez isso passe. Espero. Talvez eu precise de um tempo para me ouvir. Ou talvez eu só esteja precisando com urgência de férias. Mas penso que talvez fosse melhor ir ao cinema, ou alugar um daqueles filmes de Carlitos. Ah! Esse adorável personagem que simboliza tudo que eu quero dizer, sem nada pronunciar. Eu ouço seus gritos mudos, sua eloqüência persuasiva e até o arfar de sua respiração. Na verdade o que escuto são meus sons. Carlitos fala por mim. Quisera mesmo saber falar como ele, sem ter que pronunciar. Quisera ser ouvida de fato só pelo olhar, ou dar de ombros. Eu dispensaria a casaca, mas confesso que a bengala me atrai. Gosto da sensação de apoio que ela representa.

Acho que essas fantasias estão ultrapassadas. Já não sou a garotinha que ia ao cinema todas as quartas e domingos. Já sou balsaquiana. Já não era sem tempo de me concentrar em coisas serias? Volver a los dezessete agora? Isso é pra Violetas e Mercedes. Não pra mim. Acho que estou me deixando levar por essa melancolia porque ando ansiando por momentos mágicos enquanto vivo tantos momentos trágicos.
Ultimamente ando pensando muito em Alice, aquela que encolheu de tamanho e ficava fazendo perguntas até para os bichinhos. Não sei ao certo porque, mas desconfio que estou cansada de tanta seriedade. De tanta cientificidade, de tanta teoria.
Talvez eu queira vestir a roupa dessa personagem, para adentrar esse buraco incerto que é meu próprio coração. Esse sim é o país das maravilhas e dos paradoxos. Talvez eu não seja uma Alice, mas Célia, seu anagrama. Gosto desse jogo de palavras que borbulha em meu cérebro.

Penso que os anagramas são muito mais do que um quebra cabeça pra ser montado, enquanto não se faz uma lingüística séria. Mas essa descoberta brilhante não é minha. Isso é coisa de um grande lingüista.
Grande-pequeno, certo-errado, por ali-por aqui; cedo-tarde, perto-longe, gostoso-ruim ... e mais, muitas, inúmeras incoerências de coerentes devires que pontuam o país das maravilhas paradoxais, das muitas Alices que guardamos e que por vezes não deixamos chegar à superfície dos sentidos.
Uma superfície repleta de palavras esplendidas, insólitas, esotéricas, crivos, códigos e decodificações, desenhos e fotos, um conteúdo psicanalítico profundo, um formalismo lógico e lingüístico exemplar. E no mundo da linguagem e do inconsciente dão lugar a um jogo de sentidos e do não senso, como num caos-cósmico.

Assim, despida da seriedade que convém a uma lingüista, fico brincando de cruzar os caminhos de grandes personagens da história, da mitologia, dos contos de fadas e dia desses pensei na hipótese de Alice conhecer Narciso e salvá-lo da morte do encantamento com a própria imagem.
Hoje fico imaginando se Alice conhecesse Carlitos. E nesses devaneios imagino que os dois sairiam dançando na chuva como Geene Kelly e Freddy Astaire. Afinal, ambos são destemidos e não receiam o ridículo, não têm medo de se molhar.

Se Alice abre a boca e pergunta, Carlitos indaga com os olhos, com todos os músculos faciais. Se Alice é esguia e se encolhe para caber em qualquer lugar, Carlitos, desajeitado, como qualquer gente do mundo- inclusive os pequenos judeus de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos, vagabundos que o mundo repeliu, também entra em todo lugar: nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas, nas fábricas, barbearias, delegacias.

Os cachos dourados da menina seriam realçados se cobertos com o chapéu-coco do vagabundo, cujos olhos se derreteriam todo ao contemplar aquela doce e curiosa criatura.

Viver essa fantasia, onde o ser confunde-se com o não ser, é particular dos paradoxos do mundo dos sentidos, em que a história de Alice se cruza com a história do grande vagabundo que encantou minha geração e penso ser mais do que um delírio de alguém que está cansada de escrever laudas e laudas de relatórios, diários, sínteses e análises. Acho mesmo que é transmutar em experiência encolhendo como Alice, no verdadeiro sentido. É viver o devaneio ora renovando-os, ora recolhendo-os, ora inventando-os, ora preparando-os.

O lugar do mundo dos sentidos, que são vividamente experimentados por Alice, sem pudores e instintivamente, só é possível degustar no campo da fantasia. E essa merecida liberdade dos devires permitida à personagem de Carrol é quase uma terapia que bem caberia a uma balsaquiana que não pode volver a los dezessete.
E essa série de contrários se dá nas transmutações dos devires. O que é, em segundos torna-se o que não é. Mas isto só é perceptível a Alice, ou aos estóicos. Nós não possuímos os sentidos apurados a ponto de percebemos as mudanças ínfimas que regem o movimento, o efeito das causas múltiplas. Percebemos apenas o ato mover como ação conseqüente das causas, apenas os efeitos de superfície.

Aí então eu ouso promover o encontro da dissimulada Capitu com a ingênua menina Alice. Como? perguntariam os doutos e sábios estudiosos das teorias literárias. É mais razoável o encontro de Simão Bacamarte com a autora dessas letras excêntricas, que não fazem o menor sentido, e não são ao menos anagramas. Sei que não tenho sequer a licença poética. Não sou doutora em teoria literária. Nem trago a verve de um Drummond, ou de uma Adélia Prado pra subverter qualquer conceito, mas acredito no que proponho.

Os olhos oblíquos e de ressaca da Cigana me intrigam. E Alice também. O que posso fazer? Ignorar minhas perguntas? O que seria do mundo se não fossem as perguntas? Se Galileu não tivesse ousado perguntar a seus botões se o mundo não seria de outra forma, talvez tivéssemos prestes a chegar ao fim do mundo. O abismo foi dissipado com sua pergunta. Quem sabe não despencaríamos no vazio se Newton não questionasse a gravidade. Estaríamos, provavelmente, contemplando as sombras das cavernas não fossem a atitude de Platão e a curiosidade de Edson, (o da lâmpada) e, entre eles outros tantos curiosos que revelaram a luz ao mundo, em toda sua acepção.

Gosto de Alice porque ela pergunta. Sem medo de ser ridícula. Quem sabe se Bentinho tivesse arriscado perguntar à Capitu se ela o traía, Machado não teria descido ao túmulo carregando esse enigma e seríamos poupados dessa eterna curiosidade. Afinal, Capitu traiu, ou não traiu?

Penso que Alice não teria o menor pudor de perguntar, mas não sei se a Cigana responderia. Talvez respondesse com o olhar, que, mesmo oblíquo não poderia mais dissimular diante da menina que transmuta. Ela é maior agora e era menor antes. “É ao mesmo, no mesmo lance, que nos tornamos maiores do que éramos e que nos fazemos menores do que nos tornamos.”

Alice não cresce sem ficar menor, e nem fica maior sem ficar menor. Em todas as coisas há um sentido determinável, como afirma Deleuze: “O paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo”.

A cigana dissimulada não enganaria. Alice não deixaria. É muito difícil fugir de suas perguntas. Chego a pensar que até Carlitos responderia em alto e bom som às incansáveis perguntas dessa irrequieta menina.

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